#09 - Jornal da Semana

Bom dia, leitor!A medicina se constrói com perguntas que incomodam, revisões de conceitos e olhares atentos aos detalhes invisíveis do cotidiano clínico. Nesta edição, reunimos seis matérias que conectam ciência, sociedade e prática médica. A proposta é simples: provocar reflexão crítica com base em evidências confiáveis e discussões relevantes para quem vive — ou estuda — a saúde como campo de transformação.Boa leitura.

#01 — A Ciência do Metabolismo: o que realmente acontece no seu corpo?

MEDPROJETO12 | Série Reflexões Científicas

Hoje, no Projeto 12, decidimos falar sobre um tema muito presente no vocabulário cotidiano: o metabolismo. Termo recorrente em conversas sobre emagrecimento, energia e saúde, ele é muitas vezes mencionado sem que se compreenda, de fato, sua complexidade e importância. Nesta primeira matéria da série, queremos te conduzir por uma jornada que começa pelo básico e avança rumo às descobertas mais recentes da ciência metabólica.

O que é metabolismo?

Metabolismo é o conjunto de reações químicas que ocorrem no organismo com o objetivo de manter a vida. Essas reações permitem que nosso corpo produza energia, sintetize moléculas essenciais e elimine resíduos. Ele se divide em dois processos fundamentais:

  • Anabolismo: construção de moléculas complexas a partir de componentes simples, com consumo de energia. Está presente na regeneração tecidual, no crescimento e na síntese de proteínas.

  • Catabolismo: quebra de moléculas maiores em compostos menores, liberando energia. É a base da produção de ATP, combustível celular indispensável.

Essas reações são organizadas em vias metabólicas coordenadas por enzimas específicas, e sua regulação envolve uma rede de sinais hormonais, como insulina, glucagon, cortisol e os hormônios tireoidianos.

Por que isso importa?

Porque compreender o metabolismo é compreender o funcionamento do corpo em repouso e em movimento, na juventude e no envelhecimento, na saúde e na doença. Estudos recentes demonstraram, por exemplo, que a ideia de que o metabolismo "desacelera aos 30 anos" pode estar errada. Uma pesquisa publicada na revista Science mostrou que o gasto energético humano se mantém estável dos 20 aos 60 anos — contrariando mitos amplamente difundidos.

O que a ciência moderna está revelando?

A pesquisa metabólica está em plena expansão. Cientistas vêm estudando o papel de moléculas como o MOTS-c, um peptídeo mitocondrial capaz de mimetizar os efeitos do exercício físico. Essa descoberta abre portas para novas terapias no tratamento da resistência à insulina, obesidade e até envelhecimento metabólico.

Paralelamente, a metabolômica — ciência que analisa os metabólitos produzidos pelas células — tem ajudado a identificar padrões bioquímicos associados a doenças complexas. Essa abordagem pode ser usada para prever o desenvolvimento de doenças, acompanhar respostas terapêuticas e personalizar o cuidado médico.

Leitura complementar: APM – MOTS-c e gasto calórico

E agora?

Compreender o metabolismo é o primeiro passo para cuidar melhor do corpo e da mente. Nos próximos conteúdos, vamos explorar como ele se comporta em diferentes fases da vida, sua relação com hormônios, nutrição, sono e desempenho cognitivo. O que hoje é apenas uma palavra do cotidiano, pode se tornar um ponto-chave para a sua prática clínica e autocuidado.

Fontes para aprofundar:

🎥 Vídeo Recomendado

Para uma compreensão mais aprofundada, assista ao vídeo do Dr. Alex Rafacho sobre a ciência do metabolismo:

Texto escrito por: Luiz Eduardo Martins Freire

/

#02 - O impacto econômico de deportar 11 milhões de imigrantes dos EUA — e o custo invisível para estudantes internacionais

A recente paralisação na emissão de vistos e as propostas que flertam com a deportação em massa de imigrantes nos Estados Unidos reacenderam um debate urgente: qual o verdadeiro impacto — humano, acadêmico e econômico — dessas medidas?

Segundo o artigo publicado no Migalhas (leia aqui), estima-se que a retirada forçada de 11 milhões de pessoas geraria uma retração de aproximadamente US$ 1 trilhão no PIB norte-americano ao longo de uma década. Mas o que está por trás desses números vai além das cifras: está o desmonte de uma engrenagem que envolve ciência, saúde, educação e mobilidade social.

Tempo, dinheiro e expectativas: o custo da suspensão de vistos

Para muitos estudantes internacionais, o sonho de estudar, fazer intercâmbio, realizar estágios ou participar de programas de pesquisa nos EUA não é apenas uma aspiração pessoal. É o resultado de anos de investimento em formação, proficiência em idiomas, capacitação técnica e adaptação cultural. Cursos pagos, programas preparatórios, exames como TOEFL ou USMLE, cartas de recomendação, aplicações... tudo isso requer tempo e capital — emocional e financeiro.

Quando a emissão de vistos é paralisada ou dificultada, não há reembolso pelo tempo perdido, nem compensação pelas oportunidades canceladas. O prejuízo não é simbólico: ele é estrutural.

A força invisível dos estudantes imigrantes

Estudos do National Foundation for American Policy apontam que 23% das startups bilionárias nos EUA foram fundadas por imigrantes, muitos dos quais chegaram inicialmente como estudantes. Dados do NAFSA: Association of International Educators mostram que os estudantes internacionais contribuíram com mais de US$ 33,8 bilhões para a economia dos EUA em 2022, sustentando mais de 335 mil empregos diretos e indiretos.

Esses estudantes ocupam espaços estratégicos em hospitais universitários, centros de pesquisa e startups de biotecnologia. Retirá-los do cenário acadêmico-científico é comprometer o futuro da produção de conhecimento e inovação.

E na saúde?

O impacto no sistema de saúde é especialmente sensível. Segundo o American Medical Association, um em cada quatro médicos nos EUA é estrangeiro. A deportação em massa afetaria diretamente a assistência médica em áreas já desprovidas de profissionais, como comunidades rurais e bairros periféricos.

Reflexão final

A economia é um espelho daquilo que valorizamos socialmente. Deportar 11 milhões de imigrantes e impedir o acesso de milhares de estudantes internacionais é um tiro no pé de um país que se orgulha da sua diversidade e inovação. Para nós, estudantes brasileiros que investem nessa jornada, o impacto vai além do visto negado: é o sonho sequestrado, a ciência descontinuada, a vocação frustrada.

Como podemos proteger o conhecimento e os talentos em tempos de fronteiras fechadas?

Texto escrito por: Luiz Eduardo Martins Freire

#03- Diagnóstico de Demência: Um novo olhar sobre velhos desafios

A demência é uma síndrome neurodegenerativa marcada por um declínio progressivo das funções cognitivas e comportamentais, sendo a Doença de Alzheimer sua principal causa. Inicialmente, manifesta-se por esquecimentos sutis — como lapsos de memória, tarefas inacabadas e compromissos perdidos —, evoluindo para a incapacidade de realizar atividades cotidianas, como se vestir ou preparar refeições. Com o envelhecimento populacional, esse problema se intensifica: no Brasil, estima-se que cerca de 2,78 milhões de pessoas com 60 anos ou mais convivam com demência, sendo que muitos desses casos sequer são diagnosticados.

O diagnóstico de demência em ambiente hospitalar é particularmente desafiador. Situações agudas, como dor, infecções e desidratação, podem gerar quadros de confusão mental ou delirium, dificultando a distinção entre sintomas transitórios e sinais de uma doença neurodegenerativa subjacente. A sobrecarga nos serviços e a escassez de tempo agravam essa limitação, já que a avaliação ideal de um quadro demencial exige entrevistas detalhadas, exames neurológicos e observação clínica — recursos nem sempre viáveis nas urgências hospitalares.

Com o intuito de aprimorar esse cenário, pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP investigaram a eficácia de uma versão adaptada da Escala Clínica de Avaliação de Demência (CDR), aplicada exclusivamente a informantes — familiares ou cuidadores que convivem com o paciente há pelo menos seis meses.

O novo modelo demonstrou ser uma alternativa promissora: identificou problemas cognitivos em 70% dos casos que não estavam documentados nos prontuários médicos, com apenas 1% de falsos positivos. Além disso, permite a classificação por estágio da doença (leve, moderado ou grave).

Para além dos ganhos práticos, o estudo evidencia a relevância do diagnóstico precoce: saber se um paciente tem demência pode alterar significativamente a abordagem terapêutica, o plano de alta e o suporte familiar. Um idoso com pneumonia e Alzheimer, por exemplo, não pode ser liberado para casa com as mesmas orientações que outro sem comprometimento cognitivo. O cuidado torna-se mais individualizado, seguro e humanizado.

Fisiologia da Doença de Alzheimer e a Demência

A demência, especialmente na Doença de Alzheimer, está diretamente ligada à degeneração progressiva de estruturas e funções do sistema nervoso central. No nível fisiopatológico, as principais alterações envolvem:

Deposição de placas beta-amiloides: Peptídeos insolúveis que se acumulam no espaço extracelular, especialmente no hipocampo e no córtex cerebral, interferindo na comunicação sináptica e gerando inflamação neurotóxica.

Emaranhados neurofibrilares de proteína tau: No interior dos neurônios, a proteína tau sofre hiperfosforilação e forma estruturas insolúveis que desorganizam o citoesqueleto, prejudicando o transporte axonal e levando à morte celular.

Degeneração sináptica e morte neuronal: A soma desses processos resulta na perda progressiva de sinapses e neurônios, particularmente nas áreas responsáveis pela memória, linguagem, julgamento e comportamento social.

Redução de neurotransmissores, especialmente a acetilcolina: A atividade do sistema colinérgico, crucial para processos cognitivos, está significativamente reduzida no Alzheimer, o que compromete a memória e o aprendizado.

Essas alterações estruturais e químicas afetam diretamente a plasticidade sináptica, essencial para a formação de novas memórias, e comprometem o fluxo de informação entre regiões corticais e subcorticais. A morte neuronal leva à atrofia cerebral visível por exames de imagem, refletindo clinicamente nos estágios progressivos da demência.

A identificação precoce dessas alterações — mesmo que indiretamente, por meio de entrevistas com informantes atentos ao declínio funcional do paciente — é essencial para adaptar tratamentos, planejar cuidados e oferecer suporte ético e emocional ao paciente e sua família.

Artigos relacionados:

Texto escrito por Lumma David G. Souza

#04 — Obesidade em perspectiva: o que mudou no corpo brasileiro?

MEDPROJETO12 | Série Reflexões Científicas

Na foto acima, vemos um típico dia de sol na Copacabana dos anos 1940. O cenário é leve, ativo e espontâneo — com corpos magros e atléticos, mesmo sem academias em cada esquina ou aplicativos de nutrição. O que mudou nas últimas décadas? Por que, segundo dados da OMS, mais de 1 bilhão de pessoas no mundo vivem com obesidade? A pergunta, mais complexa do que parece, nos convida a refletir sobre o metabolismo e seus condicionantes sociais e históricos.

O corpo no tempo: de ativo a sedentário

A comparação entre fotos antigas e registros atuais não é apenas estética — é epidemiológica. A população brasileira vivenciou, nas últimas décadas, uma transformação intensa no estilo de vida:

  • Deslocamento ativo deu lugar à motorização de curta distância

  • O tempo livre ao ar livre foi substituído pelo entretenimento digital

  • A comida feita em casa foi substituída por produtos ultraprocessados

  • A rotina corporal ativa foi convertida em longas jornadas sedentárias

Esses fatores não apenas reduzem o gasto calórico total, mas também desregulam os sinais metabólicos relacionados à saciedade, ao armazenamento de gordura e à inflamação crônica de baixo grau.

Um ambiente que promove o acúmulo

A obesidade não é uma escolha individual pura. Ela é, cada vez mais, consequência de um ambiente obesogênico: cidades desenhadas para carros e não para pessoas, alimentos industrializados disponíveis a qualquer hora, trabalho baseado em telas e produtividade sentada.

Além disso, há uma intensa pressão hormonal e comportamental associada ao sono insuficiente, estresse crônico e marketing agressivo de alimentos pobres em nutrientes, todos diretamente conectados ao eixo metabólico.

“O cérebro humano não está adaptado para resistir a recompensas tão rápidas quanto as que o fast food oferece. Nosso metabolismo evoluiu em um mundo onde o alimento era escasso e difícil de obter. Agora ele é abundante, ultradenso em calorias e emocionalmente viciante.”
Trecho adaptado de The Lancet Public Health (2022)

O metabolismo não mudou — o mundo sim

O metabolismo humano continua essencialmente o mesmo que há 100 mil anos. O que mudou foi o ambiente. As enzimas, os hormônios e os receptores não acompanham a velocidade da industrialização alimentar. Com isso, os sistemas de regulação de fome e saciedade se tornam ineficazes diante de um cenário de constante estímulo.

É nesse ponto que a educação médica deve se voltar não apenas para o paciente com obesidade, mas para a sociedade que favorece seu surgimento.

O que a medicina pode (e deve) fazer?

  • Entender o paciente no contexto biopsicossocial

  • Atuar de forma preventiva com abordagens multidisciplinares

  • Combater o preconceito médico contra corpos fora do IMC "normal"

  • Desmistificar ideias simplistas sobre “falta de força de vontade”

  • Estudar o metabolismo como rede e não como soma de calorias

Leituras recomendadas para aprofundamento:

#05- Como controlar a sepse pela imunidade: Um Salto na Medicina de Precisão

Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, liderados pelo professor Alexandre Steiner, fizeram uma descoberta promissora que pode transformar o tratamento da sepse. O estudo revelou que o nervo simpático, em especial a ramificação conhecida como nervo esplâncnico maior, desempenha um papel fundamental na regulação da resposta imunológica. Essa ramificação atua de forma seletiva sobre subgrupos de neutrófilos — células essenciais da primeira linha de defesa do organismo, responsáveis por combater e eliminar patógenos durante infecções graves.

Utilizando modelos animais, os cientistas demonstraram que o nervo esplâncnico maior regula de maneira precisa esses neutrófilos, promovendo a ativação dos subgrupos mais eficazes na eliminação de microrganismos, especialmente no peritônio e no baço. A interrupção da comunicação desse nervo aumentou significativamente a atividade de neutrófilos ativados, ao mesmo tempo que reduziu a presença de neutrófilos quiescentes, que possuem características imunossupressoras. Importante destacar que essa modulação não interferiu nas funções de outras células do sistema imunológico, como os macrófagos — responsáveis por controlar a inflamação e remover detritos celulares.

Para mapear essas mudanças celulares com precisão, a equipe utilizou tecnologias avançadas como o sequenciamento de RNA de célula única. Essa abordagem permitiu identificar alterações específicas nas subpopulações de neutrófilos moduladas pelo nervo esplâncnico maior. Com isso, o estudo desafia a visão tradicional de uma regulação generalizada pelo sistema nervoso, sugerindo que esse nervo atua como um “potenciômetro”, ajustando de forma fina a resposta imune no local da infecção. Essa nova compreensão abre caminho para o desenvolvimento de terapias personalizadas, que aumentem a eficácia da resposta imune e reduzam os danos colaterais.

Entre as aplicações mais promissoras da descoberta está o uso da bioeletrônica para modular de forma localizada o nervo simpático e, assim, influenciar diretamente a resposta inflamatória do organismo. No entanto, ainda existem desafios importantes, como a necessidade de desenvolver ferramentas diagnósticas capazes de identificar rapidamente os fenótipos imunológicos específicos de cada paciente. Atualmente, exames como análises ômicas e expressão gênica podem levar semanas para serem concluídos — um tempo incompatível com a evolução rápida e imprevisível da sepse. Por isso, há uma demanda urgente por biomarcadores rápidos e sistemas automatizados que permitam análises em tempo real.

A sepse é uma condição clínica complexa, caracterizada por uma resposta imunológica excessiva ou prolongada frente a uma infecção que não foi adequadamente combatida. Essa resposta desregulada pode causar danos a órgãos vitais, levando à falência múltipla e, muitas vezes, à morte. Os sintomas da sepse incluem febre alta ou hipotermia, confusão mental, queda da pressão arterial e alterações na frequência cardíaca e respiratória. Considerada uma síndrome única, a sepse apresenta diversos padrões de resposta inflamatória — os chamados fenótipos — que reagem de forma distinta às terapias, tornando seu tratamento um dos maiores desafios da medicina intensiva.

Desde o início do projeto, o grupo do ICB tem se destacado na investigação dos mecanismos neuroimunes que regulam a inflamação sistêmica. Um dos marcos anteriores da pesquisa foi a descoberta de um eixo de comunicação entre o baço e o fígado, mediado pelo leucotrieno B4 (LTB4), uma molécula sinalizadora que permite ao baço coordenar com o fígado a intensidade da resposta inflamatória. Esses avanços culminaram na identificação do papel seletivo do nervo esplâncnico maior como um modulador-chave da imunidade durante infecções graves.

“Entender como diferentes órgãos interagem para controlar a inflamação sistêmica amplia nosso conhecimento sobre a sepse e pode abrir novas perspectivas para o tratamento de outras condições inflamatórias graves”, ressalta o professor Alexandre Steiner, coordenador do Laboratório de Neuroimunologia da Sepse do Departamento de Imunologia do ICB.

A cada ano, a sepse é responsável por, pelo menos, 11 milhões de mortes no mundo. A descoberta da equipe brasileira pode representar um passo decisivo rumo a estratégias terapêuticas mais precisas, eficazes e individualizadas no combate a essa grave síndrome.

Texto escrito por Lumma David G. Souza

#06- Rir Para Não Morrer: A Piada Como Último Refúgio

O Riso Como Redenção: Humor, Sofrimento e Liberdade na Era da Censura Judicial

Por que rimos daquilo que nos fere? Que tipo de alma é capaz de transformar dor em comédia? E mais importante: que sociedade é essa que julga criminoso o impulso humano mais antigo de suportar a tragédia com uma gargalhada amarga?

A recente condenação do humorista Leo Lins a mais de oito anos de prisão por piadas feitas em um show de stand-up é um evento que exige mais do que indignação ou aplauso — exige reflexão. O que está em jogo aqui não é apenas a liberdade artística, mas algo mais profundo: a função espiritual do humor diante do sofrimento humano.

O Riso Como Ferramenta de Sobrevivência

Viktor Frankl, psiquiatra austríaco e sobrevivente dos campos de concentração nazistas, escreveu em Em busca de sentido que o ser humano pode suportar qualquer coisa — qualquer coisa — desde que encontre um sentido para o sofrimento. E, curiosamente, ele conta que o humor, mesmo em Auschwitz, era um dos poucos instrumentos que preservavam a dignidade e a sanidade de quem estava ali condenado à morte. “O humor é outra das armas da alma na luta pela autoconservação”, escreveu Frankl.

Pois então: se é possível rir em Auschwitz, por que não seria legítimo rir — ainda que com dor — dos traços mais cruéis e sombrios da existência humana? A piada, quando bem-feita, revela uma ferida. Mas não é a ferida que a condena — é a coragem de apontá-la.

Humor Negro, Consciência e Estoicismo

A tradição estoica, da qual Marco Aurélio foi um dos grandes representantes, ensina que não devemos nos revoltar contra aquilo que não podemos controlar. Sofrimento, morte, injustiça, doença, ridículo — todos esses são aspectos inevitáveis da condição humana. E o que fazemos com eles? Fugimos? Negamos? Nos ressentimos? Ou os enfrentamos com a modéstia de quem sabe que a dor é o preço da consciência?

O humor negro é, nesse sentido, uma expressão estoica por excelência. Ele reconhece o absurdo da existência, mas em vez de chorar, escolhe rir. E esse riso, por mais desconfortável que pareça, é uma forma de coragem. Uma maneira de dizer: "Isso dói, mas não me destrói." Ora, será que preferimos um mundo em que todos apenas silenciam diante da dor? Que tipo de espírito frágil queremos formar, incapaz de lidar com ironia, crítica ou desconforto?

Lembro-me, pessoalmente, de quando perdi temporariamente a visão de um olho. Foi, sem dúvida, uma das experiências mais angustiantes da minha vida. Eu não sabia o que estava acontecendo, não havia uma previsão de melhora, e as pessoas ao meu redor também não sabiam como reagir. A tensão era constante, como se a qualquer momento tudo pudesse desabar. No início, eu mesmo não sabia lidar com aquilo. Mas, com o tempo, descobri que a melhor maneira de falar sobre aquele assunto “pesado”, e de responder à inquietude daqueles que queriam entender o que eu estava passando, era através do humor. E não um humor leve, superficial. Eu recorria ao humor mais escancarado possível para descrever aquela situação — como se rir do absurdo fosse o único jeito de me manter inteiro. E, curiosamente, funcionava. Aquilo que me esmagava começava a se transformar em algo suportável. O ambiente ficava menos tenso. Eu mesmo me sentia mais capaz de aceitar aquela condição, ainda que temporária — e, naquele momento, eu nem sabia que seria temporária. O humor foi minha alavanca psicológica para suportar o que parecia insuportável.

A Tragédia como Estética Moral

Dostoievski escreveu que “a beleza salvará o mundo”. Mas em suas obras, a beleza sempre anda de mãos dadas com o abismo. Seus personagens são miseráveis, torturados, contraditórios — e por isso profundamente humanos. Em Os Irmãos Karamázov, ele mostra que a tentativa de criar um mundo sem dor leva inevitavelmente ao totalitarismo. Quando não suportamos mais o sofrimento, buscamos controlá-lo. E quando buscamos controlar o sofrimento dos outros — inclusive o que os faz rir — flertamos com a tirania.

Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgo, dizia que “toda unanimidade é burra”. E, mais do que isso, nos ensinava que o politicamente incorreto não é uma licença para ser cruel, mas uma exigência de honestidade brutal. Ele não poupava ninguém, nem mesmo a si próprio. Sabia que rir do trágico é admitir que ele existe. E talvez só possamos transformá-lo quando somos capazes de nomeá-lo, nem que seja através de uma gargalhada torta.

Liberdade de Expressão e o Julgamento Moral do Riso

É evidente que piadas podem ofender. Mas desde quando a ofensa se tornou critério para prisão? Será que estamos prontos para aceitar que o desconforto emocional de alguns justifica o silenciamento de outros? Quando o gosto pessoal começa a reger decisões judiciais, abrimos mão da liberdade em nome de uma suposta proteção — e nos tornamos cúmplices de uma moral oficial, instável, aplicada por conveniência política ou pressão social.

Não é papel do Estado decidir o que é engraçado, o que é suportável ou o que é aceitável sentir. E se o riso incomoda, isso talvez diga mais sobre nossa fragilidade coletiva do que sobre a crueldade do comediante. A arte — especialmente a comédia — não foi feita para confortar, mas para provocar. Ela é a fagulha que denuncia contradições, expõe hipocrisias e transforma desgraça em catarse. Quando se pune o humor com prisão, o que se quer, de fato, é negar ao povo a possibilidade de processar o próprio sofrimento.

Como disse o próprio Leo Lins em seus shows: "O humor alivia a dor, seja ela qual for." E também: "A vida de perto é uma tragédia e de longe é uma comédia. Isso quer dizer que quando você consegue rir de uma situação significa que você conseguiu colocar a uma distância suficiente para enxergar graça naquilo. E a essa distância, a dor não te alcança."

Essas frases não são apenas defesas do riso — são declarações de sobrevivência emocional. Rir de uma tragédia é, paradoxalmente, uma forma de não ser consumido por ela. E ao proibir o riso, o que estamos dizendo é: “Não se afaste da dor. Não a transforme. Carregue-a em silêncio, sozinho.” Isso não é justiça. É controle. E, muitas vezes, um controle exercido por aqueles que têm medo — medo de perder o monopólio da narrativa, medo do ridículo, medo da própria humanidade.

A Sociedade da Vítima e o Julgamento do Artista

O que a condenação de Leo Lins revela é o triunfo da mentalidade vitimista sobre a ética da responsabilidade. Em vez de ensinar às pessoas a enfrentar a dor com coragem, incentivamos a sensibilidade extrema, a intolerância ao desconforto, a medicalização da linguagem. Mas o mundo não é um lugar gentil. E se não prepararmos as pessoas para enfrentá-lo, estamos criando uma geração de órfãos espirituais — incapazes de rir, incapazes de sofrer, incapazes de pensar.

Conclusão: Rir é um Ato de Liberdade

A verdadeira pergunta não é se gostamos ou não das piadas de Leo Lins. A questão é: queremos viver numa sociedade onde o riso é policiado? Onde o sofrimento só pode ser representado sob aprovação estatal? Onde o humor é permitido apenas se for domesticado, inofensivo, e completamente vazio?

O humor — especialmente o ácido, o negro, o cruel — não é uma ameaça à dignidade humana. É uma forma de enfrentá-la. Porque a vida, em sua essência, é tragicômica. E o ser humano que não pode rir da tragédia é também aquele que será esmagado por ela.

Será que não percebemos que, ao calar o humor, estamos dizendo ao sofrimento: você venceu?

Referências:

  • Frankl, V. E. (2008). Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração. 31ª ed. Petrópolis: Vozes.

  • Marco Aurélio (2006). Meditações.

  • Dostoiévski, F. (2001). Os Irmãos Karamázov.

  • Rodrigues, N. (2007). O Óbvio Ululante: primeiras confissões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

  • Peterson, J. B. (2018). 12 Regras para a Vida: Um antídoto para o caos. São Paulo: Alta Books.

Texto escrito por Pedro Henrique M. Braga

 Fechamento

Fechamento editorial | MEDPROJETO12

A medicina não é feita apenas de protocolos e diagnósticos — mas de contexto, curiosidade e crítica. Cada uma das matérias desta edição foi pensada para ampliar seu repertório, provocar perguntas e fortalecer o raciocínio clínico e ético que formam um profissional de saúde completo.

Se algum dos temas abordados hoje despertou novas ideias ou inquietações, é sinal de que cumprimos nosso propósito. Que você siga estudando com profundidade, questionando com responsabilidade e praticando com humanidade.

Até a próxima edição.
Assinado: Equipe MEDPROJETO12
Pedro Henrique M. Braga | Luiz Eduardo M. Freire | Lumma D. G. Souza

A medicina do futuro começa agora — nas escolhas que fazemos, nos temas que discutimos e na maneira como nos posicionamos diante de um mundo em constante transformação.

Luiz Eduardo Martins Freire

Bem-vindo ao futuro do aprendizado em Medicina!

Estamos construindo uma comunidade onde o conhecimento é compartilhado, atualizado e acessível para todos. O Projeto 12 é mais do que um jornal; é a sua aliada na jornada de se tornar um médico preparado para enfrentar os desafios da profissão.

@medprojeto12